Nelma mostrou a Bahia na Alsácia...
Ventava forte e as coisas iam caindo e fazendo aquele barulho característico de começo de um temporal.
Nelma, ou como eles diziam por lá Nelmá, nem se mexia.
Olhava para o computador e conversava em um tom bem acima do vento ou dos galhos e objetos que voavam.
Jérôme tinha uma admiração inabalável por Nelma.
Ela cuidava de Madame Martha há mais de 10 anos.
A Mãe de Jérôme era uma alemã cheia de vida, cheia de carinho, histórias e generosidade.
Para cuidar da mãe, Jérôme pediu referências, foi a agências de emprego e passou meses procurando. Até que depois da colheita, percebeu que aquela baiana forte (para não dizer gorda), risonha e de uma simpatia ímpar era a pessoa certa.
Fez a proposta e Nelma nem acreditou.
Passava férias pagas pelos filhos e se enfiou numa colheita.
Quando preparava a volta pra casa veio o convite:
- Fica! Te dou um bom salário, uma casa e uma familia.
Vida simples, no campo. Era um sonho para ela.
A proposta seria absurda para outra pessoa, não para a baiana Nelma.
Ela que criou 5 filhos sem marido.
Filhos que nasceram e cresceram numa favela em Salvador com os olhos fixos em um futuro melhor.
A essa altura, Nelma pode fazer o que quiser!
O último trabalho como baiana do acarajé era só um hobby.
Reconhecem cada prato de comida servido e cada centavo conseguido para compra de livros, uniformes e cursos.
O orgulho de Nelma é enorme.
A fala mansa logo encantou a família de Jérôme.
O jeito simpático, sorridente e otimista chega a ser um escândalo por aqueles lados da Alsácia.
Quando ela parou de gritar diante do computador, pegou a bolsa e saiu no meio do temporal.
Jérôme desconfiou.
O mistério atravessou o inverno, passou pela primavera e quando as uvas já estavam quase maduras Jérôme começou a entender que não eram nem filhos e nem noras que falavam com Nelma pelo Skype.
Mal falou em contratar os temporários para a colheita Nelma veio com a sugestão:
Tenho um amigo baiano, alto, forte...
Aquilo despertou ainda mais a curiosidade de Jérôme que aceitou na hora.
Os dez anos em contato com a língua portuguesa fizeram que Jérôme entendesse muita coisa, mas naquele dia quando bisbilhotava a conversa, o proveito foi zero.
- Cabeça de gelo meu rei... Monsieur Jérôme é Pedra 90!
Para não dizer que o proveito foi zero, Jérôme entendeu o nome dele, mas isso significava muito pouco.
Chegou a procurar em dicionários, mas não conseguia escrever o Pedra 90.
Chegou o dia da colheita e Luís se apresentou.
Era realmente um negro alto, forte e bem humorado.
De fala mansa como Nelma.
A noite pela fresta da janela, Jérôme via a festa dos trabalhadores da colheita com Nelma e Luís abraçados sem nenhuma cerimônia.
No dia seguinte com La Puce à l'Oreille Jérôme perguntou direto.
Como um jab de Muhamed Ali: Madame Nelma, qu'est ce que c'est Cabeça de Gelo, Pedra 90???
Nelma caiu na risada, Luís chegou a chorar de rir.
Com um francês impecável de quem aprendeu também falar o alemão além de toda a sabedoria trazida da Bahia, Nelma explicou que cabeça de gelo era cabeça fria, calma tranquila.
Pedra 90 era uma antiga expressão que tinha saído do jogo de tombola e invadido a cabeça dos jovens de 4 ou 5 décadas passadas.
Na tombola, um saco tem 90 pedras e a 90 é a mais valiosa.
Quando percebeu que tinha sido elogiado de forma tão original, Jérôme não sabia se ria ou se chorava de emoção.
Os dois deram a notícia que iriam se casar e que os filhos viriam para a festa.
Ela nem cogitou em deixar dona Martha sozinha, mas Jérôme se adiantou: Luís, você vai ser o melhor viticultor da Alsácia...
Mal os vinhos entraram nos cascos, a Alsácia virou Bahia.
No casamento de Dona Nelma, teve samba, axé e acarajé.
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