sábado, 28 de junho de 2014

Os vinhos de António não ficavam velhos nunca - Conto







Não era nada fácil subir aquelas encostas do Douro. Inverno ou verão o sofrimento era igual.

António subia, descia, subia de novo, descia de novo.

Não tinha um corpo atlético, era forte mesmo.

Parecia que estava andando sobre nuvens.

Maria Inês fazia economia de energia. Subia e descia o mínimo possível para orientar a colheita e organizar o trabalho que nessa parte do mundo é com certeza mais difícil.

Os dois já estavam juntos havia 2 décadas, mas antes disso os movimentos de António já impressionavam.

Claro que com tanta disposição António também atraía os olhares das outras raparigas da região.

Maria Ines nem dava bola.

O interessante é que os vinhos também tinham vida longa.

Ninguém acreditava como aqueles vinhos de António permaneciam jovens com o passar dos anos, como nenhum outro.

Um dia enquanto subia e descia as encostas percebeu que Maria Inês estava mais quieta.

Falava pouco e parecia que queria contar alguma coisa.

Seguiu trabalhando e resolveu não perguntar nada.

No dia seguinte, na semana seguinte, a mesma coisa.

Naquele dia, António já tinha programado uma conversa.

Com hora marcada e tudo.

Ele largou o trabalho, entrou e foi direto pro banho.

Inês parecia pronta e apenas olhava os movimentos de António.

Os olhos verdes de Inês estavam inchados, o nariz fino e pontudo estava vermelho, a boca parecia ansiosa para dizer algo, mas os lábios se prendiam de uma forma forçada.

Nem o corpo magro e cheio de curvas e encanto conseguia ter graça.

O banho era rápido e os dedos de Maria Inês se apressaram.

Mal o chuveiro desligou e a sala ficou vazia.

António se enchugou rapidamente, se vestiu com uma roupa simples, de ficar em casa e foi correndo pra sala.

-Inês...

-Inês...

-Inês... (dessa vez mais alto).

Nenhuma resposta.

António nem imaginou que Inês pudesse ir embora.

Continuou chamando e se sentou para esperar.

O tempo foi passando e ele chamou mais algumas vezes.

Levantou e viu o bilhete em cima da mesa.

Nunca se sabe o verdadeiro motivo em uma hora dessas.

António apenas enxugava as lágrimas e tentava se manter em pé.

Embora a força fosse quase sobre humana para subir e descer as encostas de xisto do Douro, numa hora dessas o cara fica fraco, sem reação, a ponto de cair.

A noite foi a mais longa da vida de António.

A ansiedade, a dificuldade de entender, a desilusão depois de mais de 20 anos era um tormento.

Os dias foram passando e o sobe e desce das encostas também.

António teve notícias de que Inês tinha ido para a Alemanha. Preferia não imaginar o motivo, mas no fundo ele sabia.

Os anos também passaram e as pernas não pareciam mais flutuar, nem a cabeça pensava tanto em Inês.

Mas ainda pensava.

O Rio Douro, que estava sempre ao fundo, parecia levar cada pedaço da lembrança de António, a cada dia, a cada ano...

Já faziam 10 anos sem notícia nenhuma de Inês.

Os pés agora mais descasavam do que subiam, mais ficavam pra cima do que desciam.

Os vinhos pareciam envelhecer melhor que ele.

Uma senhora de cabelos grisalhos, se aproximava com dificuldade.

Mesmo tão diferente era muito familiar para António.

Os cabelos grisalhos não conseguiam tirar o brilho dos olhos verdes, que hoje tinham um olhar profundo no meio de olheiras enrugadas.

Ela se aproximou e os dois apenas se abraçaram.

Nenhum sorriso, mas muito choro.

Sabe-se lá o que houve com Inês.

António nunca perguntou. Nunca procurou saber.

Como por um milagre voltou a subir e descer as encostas como na infância.

Como nos vinhos que não ficavam velhos nunca...




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