Nem
cheguei a
engolir o primeiro gole da segunda taça de vinho e uma senhora com os cabelos
infestados de rinsagem me disse: "não precisa mais de um copo. O médico me
disse que dois dedos de vinho por dia já está bom".
Está bom pra quê? perguntei.
-Pra saúde, o resveratrol, colesterol, circulação, etc... etc... etc...
Apenas balancei a cabeça e continuei apreciando meu vinho.
-Sabe que o suco de uva faz o mesmo efeito!
Que efeito? perguntei.
-Pra saúde, resveratrol, colesterol, circulação, etc... etc... etc...
Um grande prato de grãos, salada, legumes, pó disso, pó daquilo, chegou para a
senhora e enfim pensei que teria sossego.
Me enganei.
-O trigo é rico em vitamina E, as folhas verdes ajudam a fixar o cálcio, os
grãos germinados são ricos em proteínas, etc... etc... etc...
Bebi mais um gole e percebi meu prato chegando, fumegante, maravilhoso,
delicioso.
Dessa vez vou ter sossego!
Me enganei de novo!
Como vai comer essa carne, isso tem toxinas, hormônios, aumenta o colesterol, a
pressão sanguínea, etc... etc... etc...
Informo a você que está lendo, que cada vez que escrevi o etc, tive vontade de
levantar e ir embora, mas respeitei os cabelos brancos da senhora. Aliás,
roxos!
Quando coloquei na boca meu pedaço de carne ela começou a olhar e balançar a
cabeça, fingi que não vi e continuei.
Mais uma taça de vinho e minha vontade de conversar apareceu.
Sabe minha senhora, odeio suco de uva. Vinho com gosto de suco de uva então,
nem pensar!
Saladas como com prazer, carne como com prazer, quando sento à mesa é sempre
com prazer!
Quando coloco o nariz em uma taça de vinho sinto uma sensação maravilhosa, não
dá tempo de pensar se vai fazer mal ou bem!
Temos a ilusão de que somos imortais, mas com carne ou sem carne, com saladas
ou sem saladas, um dia vamos embora. Pensando assim, é melhor comer com prazer,
remédios são remédios.
A velhinha gostou da conversa, pediu uma taça e se serviu com exatos dois
dedos.
Disse que já tinha sido vegetariana, macrobiótica, seguia a medicina
ortomolecular, homeopatia, acupuntura, Yoga, tudo!
Ouvi calado enquanto esperava minha sobremesa.
Quando o fondant de chocolate pousou na mesa o discurso
recomeçou:"chocolate é um veneno, vicia, causa agitação, engorda, etc...
etc... etc..."
Comi, desta vez com pressa, pedi a conta e fui embora.
A velhinha ficou lá, comendo um pedaço de abacaxi.
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