sábado, 3 de setembro de 2011

Exótico, engraçado, trabalhador, humilde...





Naquele dia o Mistral foi violento, mas serviu para levar as nuvens pra longe e deixar o céu azul escuro que o pessoal do Languedoc costuma dizer que é céu de Languedoc.
Aliás tudo que acontece em qualquer região da França os nativos dizem ser único, melhor, mais importante, maior, mais ou menos como acontece na Argentina ou em alguns estados brasileiros onde o bairrismo está acima de qualquer bom senso.
Delphine foi até os vinhedos ver se o vento quente e forte tinha causado algum dano. sim, no verão o Mistral é muito quente e no inverno muito frio.
Aliás no Languedoc, no idioma local o Mistral se chama Magistrau, talvez um nome mais apropriado para a realidade e também para o bairrismo.
Os vinhedos estavam intactos, tinham algumas folhas arrancadas, alguns galhos soltos dos arames, mas nenhuma perda.
Aquelas uvas conhecem o Magistrau e são duras na queda.
Estrago mesmo faria aquele carro com direção do lado contrário que se aproximava dos vinhedos.
-Bonjour mon cousin!
Aqueles abraços, beijinhos deveriam ter sido fotografados e mostrados semanas depois.
Xavier chegava de Londres.
Mudou para a Inglaterra com os pais e trabalhava como locutor esportivo numa rádio de Liverpool.
Para Delphine era uma informação estranha já que Xavier tinha a língua presa e alguns sons não saiam como deveriam.
-Esses ingleses são estranhos, na França é preciso ter boa dicção para falar nas rádios!
Os ingleses não eram tão estranhos assim, já que tinham demitido o rapaz num episódio até hoje mal explicado.
Delphine não sabia de nada disso, sabia apenas que o primo viria para assumir a parte do pai naqueles vinhedos. Só isso já seria suficiente para o mal estar, já que Delphine cuidava dos vinhedos com amor e enviava para a Inglaterra cada centavo do que o tio tinha direito.
No primeiro dia de trabalho ficou decidido que Xavier, como não tinha a mínima experiência com agricultura ou enologia, cuidaria dos contatos internacionais e dos turistas que chegavam em quantidade principalmente no verão.
O trabalho correu normalmente, mas Delphine notou que o primo tinha voltado muito mais falante e extrovertido.
Conforme a noite se aproximava Xavier falava mais ainda e o sotaque inglês, a língua presa e palavras soltas no idioma estrangeiro irritavam bastante a jovem Delphine.
Delphine bonita demais.
Os turistas vinham para a visita e sempre paravam mais tempo onde estava Delphine com perguntas vazias para ganhar tempo ao lado dela.
Isso só piorava a intolerância de Delphine com Xavier.
Quanto mais tempo ficavam os turistas, mas ela tinha que ouvir a voz do primo com aquele som estranho que saía de sua boca jovem, com um aparelho para corrigir os dentes.
Não demorou uma semana e Delphine descobriu porque Xavier falava tanto.
O primo não sabia o que era "cracher".
Bebia tudo, sem cuspir nada.
Delphine não se segurou e disse: Você degusta vinhos o dia todo ao lado dos turistas, você não pode beber o dia todo, "il faut cracher".
Xavier não dava a mínima, bebia cada gole e falava pelos cotovelos.
Um dia, disfarçado de turista, estava um crítico de um jornal de Paris.
Chegou, conheceu Xavier, conversou com ele e no final de semana seguinte estava no caderno de gastronomia do tal jornal: Vinho excelente, exuberante, forte como o Mistral, sensual como sua proprietária e exótico como a recepção que tive na vinícola...
Delphine pegou o jornal e correu para encontrar Xavier.
Ele estava pra variar com a taça na mão e dessa vez sem nenhum turista para provar os vinhos.
-Tu as vu ça???
Xavier pegou o jornal, bateu os olhos e caiu na gargalhada.
Delphine saiu batendo a porta e prometendo ligar para o tio em Liverpool.
-Tio, prefiro que assuma minha parte e me mande os lucros como venho fazendo com o senhor há 18 anos. A convivência com Xavier é insuportável.
O tio explicou para Delphine que Xavier já havia sido demitido da rádio por transmitir uma partida de futebol visivelmente alcoolizado, que a ideia de ir para a França partiu do próprio Xavier e que aos 36 anos, não ouvia mais os conselhos do pai.
O pedido do tio para que Delphine tentasse afastar Xavier caiu como uma música no ouvido da francesa.
-Deixa comigo tio!
Por essas coincidências que só o destino é capaz, a colheita estava próxima e Delphine só precisou de um pouco mais de paciência para dar o troco em Xavier.
Os trabalhadores chegavam da Irlanda, Albânia, Portugal, Inglaterra e Estados Unidos.
Xavier pensou que tomaria conta dos trabalhadores e seria uma espécie de gerente da colheita.
Enganou-se.
Sob os olhares de Delphine, Xavier foi escalado para o trabalho duro mesmo.
No primeiro dia foi se arrastando pra cama, mal consegui dormir de dor nas costas.
No segundo dia Delphine deu um comprimido de anti-inflamatório e mandou Xavier para o trabalho.
Foi assim por uma semana.
Xavier não foi capaz de acompanhar as reuniões animadas pós colheita e ia direto pra cama.
Mal bebia a taça de vinho que todos bebiam para acompanhar o almoço.
No último dia, Xavier estava mais forte, se sentia melhor, obedecia a prima com respeito.
Delphine passou a admirar a humildade do primo, o respeito e a dedicação.
Quando a colheita acabou os dois jantaram junto com os trabalhadores, beberam, cantaram, festejaram.
A língua presa e o sotaque esquisito voltaram imediatamente.
Delphine dessa vez riu.
Os trabalhos recomeçaram depois da colheita.
A intolerância virou admiração.
O crítico voltou e fez questão de ser atendido por Xavier.
Achou algo diferente em Xavier, mas que não tirava nem um pouco a simpatia do rapaz.
Na crítica, o velho jornalista escreveu: O vinho continua Excelente, exuberante e mais forte que o Mistral.
O que mudou foi o atendimento da figura exótica que me recebeu na visita passada.
Xavier aprendeu a cuspir.

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